quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Círculos

Como num laboratório de alquimia ritualizo fórmulas. Procuro tecer mantas de retalhos de vidas e de outros bocados de histórias inventadas ou vividas.
Afinal inventar ou viver podem ser a mesma coisa, ou pelo menos, terem a mesma finalidade... por  isso procuro acrescentar uma pitadinha de tudo aqui, outra de nada acolá.
Envolta num nevoeiro pertubador de tão branco... caminho diante de ti. Observas-me sério, de sobrancelhas erguidas... caminho à tua volta, em círculos... olho-te nos olhos... continuo a andar sobre a tua circunferência, sem falar, lentamente, procurando decifrar o que tentas ocultar. Sorris... não sei se doce ou ironicamente... não retribuo... continuo serenamente a rodear-te como quem abraça o mar. Passo as mãos no cabelo com um gesto descontraído... contudo encenado. Gosto que me observes, gosto de sentir-me vista por ti. Continuo a minha caminhada... espero que não te canses... quero andar para ti... quero ver-te...
até que te levantas, vens ter comigo... seguras-me e fazes com que eu pare a minha caminhada... que me detenha em ti.
Deixo de circular e o mundo inicia a sua inebriante dança à nossa volta. À minha volta... só por mim posso falar, só por mim escrevo... mas não é por mim que respiro. É por esta vontade, esta ansiedade... este crer maior do que o querer... esta febre que vive em mim. Abraças-me dentro do espesso nevoeiro e, pela primeira vez, não sinto que sou o escudo... mas sim a «escudada».
Contudo a minha dança continua... lenta e ritmada... misericordiosa e pecaminosa... tal como um escorpião num círculo de fogo.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Caberei neste breve espaço de tempo?

 Afinal não existem castelos encantados em nuvens de algodão doce?
O céu não é cor-de-rosa e as flores não são deliciosos e coloridos biscoitos? O meu cavalo dourado não pode andar sobre um translúcido rio?
Não basta alimentar-me de poesia, tenho, também de comer seres vivos? Afinal... tenho de sentir dor e frio? Não basta cobrir com o meu cabelo o meu frágil corpo nu?
Diz-me que é mentira... os boatos que tenho ouvido por aí... que um determinado cavaleiro não voltará numa manhã de nevoeiro... que o velhinho de barbas brancas que carrega um saco de prendas ao ombro... não existe? Não quero ouvir... que as searas não são chocolate e que as colinas não são bombons... quero lá que me digas que as estrelas não falam e que o mar não canta. Não posso usar tranças? Nem tão pouco chapinhar nas poças de água? E se me apetecer sair à rua de pantufas? Poderei saltar para aquela tela que me encanta? Não?! E andar descalça na relva? E abraçar aquela árvore grande (como fazia quando vinha da escola)?
Posso não ter tempo de passar largas horas alimentando e observando o trabalho árduo das formiguinhas? Afinal não devo subir à figueira, nas tardes de Verão, e sentar-me num dos seus troncos a comer figos quentes pingados de mel?
Rogo para que me deixem saltar ao elástico durante longas tardes e de seguida lanchar, sentada na soleira da porta olhando o sol (alto) e o cume das árvores.
Nunca me tinham dito que...
Afinal tenho mesmo de crescer?!

domingo, 23 de janeiro de 2011

Recordo-te



Lembro-me de ti... deitada no sofá, que tornaste teu, bem junto à janela, com a tua manta preferida. Recordo o teu cheiro, o teu olhar doce e meigo... os teus suspiros.
Tenho saudades de passar a mão demoradamente no teu pêlo limpo e sedoso, preto e brilhante... e beijar esse teu comprido nariz. Quem me dera voltar a sentir, por baixo da mesa de refeições, a tua cabecinha sobre os meus joelhos.
  Quantas noites passámos juntas, quantos passeios... quantas caminhadas pela praia, quantos gelados partilhados. Diariamente, ainda de madrugada, saías da tua caminha para ires até à porta ver-me partir. Nunca quiseste saber se eu estava com bom ou mau aspecto, nunca pusseste em causa o meu mau feitio... sempre bebeste as minhas lágrimas sem perguntar de que eram feitas... se de tristezas, se de alegrias... se de dor... ou de amor.
  É esta a última imagem que guardo de ti... deitada sobre a maca do veterinário... de olhar doce e sereno... a lamber as minhas lágrimas enquanto eu te beijava desesperada... numa tentativa de me despedir de ti... numa tentativa de decidir o que fazer para não mais te ver sofrer. Parecias dizer: «Não te preocupes, deixa-me dormir... eu ficarei bem!». Esta foi mesmo uma das mais duras decisões que tive de tomar... uma das únicas da qual me arrependo, vezes sem conta, mas tu não merecias... não merecias sofrer... ter ainda mais dores... sem te queixares... nunca.
  Quando foste atirada, ainda com meses, para dentro do quintal do avô... nunca imaginei que te tornasses numa amiga tão grande (apesar de «apenas» pesares 30 kg)... Lembras-te quando ficaste grávida e não conseguiste ter os cãezinhos? Depois da operação deixaste de comer... eu sentava-me junto a ti e durante duas horas diárias... «obrigava-te» a comer grandes «pratadas» de uma papa para crianças; com uma seringa introduzia-te a papa por entre os dentinhos e pronto... voltaste a ficar linda e cheia de apetite, como sempre.
  Nunca me importei quando roías os tapetes... e comias os cortinados... e nem queria saber quando criticavam as tuas formas, demasiado redondas. Carreguei-te, quase sem ter forças, quando te doíam as articulações; nessa altura o teu focinho já não estava completamente preto.
  Todos os 15 natais desembrulhaste, à semelhança dos restantes membros da família, a tua prendinha. Sempre que entro em casa sinto a tua falta... o teu sofá está vazio... e já não vens à porta receber-me.
  Será que te agradeci o suficiente? Obrigada por eu ter sido tua... por te esconderes debaixo da minha secretária, junto dos meus pés, durante longas noites de trabalho... obrigada por, ao contrário de tantos outros, nunca me teres abandonado em situação nenhuma... por me teres deixado, tantas vezes, adormecer com a cabeça sobre o teu quente lombo... obrigada... por me coçares, com os teus dentinhos, os dedos dos pés desnudados... sabia tão bem...
  Semanas antes do cancro te afastar fisicamente de mim... encontrei um pequeno gato abandonado num estacionamento de um centro comercial. Se existem coincidências ou não... não sei... só sei que o acolheste muito bem... ele seguia todos os teus passos pela casa... e tu, do alto da tua «maioridade» apenas o olhavas de lado... como um idoso observa as brincadeiras despreocupadas e alegres das crianças. Já estavas doente e eu não sabia. Julgava que apenas estavas a envelhecer. Quem me dera ter reparado antes... a tempo de algo poder fazer.
  Resta-me o tal gato cinzento... resta-me a esperança de não ter prolongado o teu sofrimento. Resta-me a tua trela de bolinhas cor-de-rosa, a tal que levava na mão... e com que saí, sozinha, do veterinário... sem ti minha amiga... minha doce e bela Diana... resta-me tudo isso e, sobretudo, as recordações... que guardo de ti.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

«Resvés Campo de Ourique»

  Apetece-me utilizar esta expressão popular para definir o estado actual do País... este País que vai a eleições no próximo domingo, convém (re)lembrar... o mesmo Portugal que continua com «as medidas de austeridade» por causa de uma tal de crise(?) e, também, o mesmo que tem tido, até então, um economista como presidente. Economista esse que à semelhança de todos os economistas deve ter começado por estudar a «Bíblia» da Economia de Paul Samuelson (falecido em 2009)... contudo e diferentemente do «pai da economia moderna» (um dos poucos nomes que me conseguiu fazer olhar de diferente forma para esta ciência e, exactamente, por mostrar tão claramente como esta influencia e é influenciada por todas as outras) não teve a capacidade de aproximar esta ciência do grande público. Talvez o tenha «seguido», eu diria em demasia, no que diz respeito ao apoio da teoria do Estado intervencionista (utilização de medidas monetárias e fiscais, por parte dos Governos, para enfrentar recessões e depressões económicas), assim como seguiu Gordon Brown e Barack Obama (mas isso são outras histórias e outros contextos).
  Contudo, e tendo em conta a forma como estamos a ser «apertados», será que dá para ter em conta, ou para não esquecer, a necessidade da existência de uma visão um pouco mais ampla? Para mim a ciência (em oposição à religião e ou ao sistema de crenças) é única, uma só que se divide em vários ramos de uma mesma árvore, com um só tronco. Onde estão, agora, os troncos que dizem respeito às ciências sociais e humanas? Será que uma análise séria (e inteligente, no terreno) ao modo de vida, aos comportamentos, aos gastos, às manifestações culturais e às sociais, também, não seria relevante para medir as consequências das medidas optadas pelo Governo para fazer «face» à crise?
  Eu diria que, quantitativamente, essa análise revelaria que estamos a (sobre)viver «Resvés Campo de Ourique», e quando digo «estamos» refiro-me à «antiga» e quase extinta classe média... que praticamente de um dia para o outro vê a sua qualidade de vida ser reduzida para metade... sem exageros e tendo em conta que o ano apenas começou há 19 dias.
  O certo é que este povinho - disposto neste rectangulozito «plantado à beira-mar» - continua conformado e procura adaptar-se sem muito refilar... vivemos «résves».

P.S.: Para quem não sabe, muitos atribuem o termo «Resvés Campo de Ourique» ao acontecimento do dia 1 de Novembro (dia marcante por este e por outros motivos) de 1755 - Dia de Todos os Santos – quando um terramoto de elevada magnitude, seguido de um tsunami, atingiu a cidade de Lisboa, matando milhares de pessoas. A força do tsunami foi tal que as águas entraram por Lisboa e chegaram bem perto de Campo de Ourique. Foi «resvés».
  Contudo existe uma outra teoria: Marina Tavares Dias (em Lisboa Misteriosa) apresenta a versão segundo a qual a expressão se refere ao traçado urbano da Lisboa oitocentista; a circunvalação que traçava os limites da cidade passava dentro do bairro sendo que Campo de Ourique «à justa» fazia parte da capital.
Seja como for é à justa, ou resvés,  que estamos. Com pouco espaço para «manobras».

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

«Chatices» e politiquices

 Sabem o que realmente me «chateia»? Quase que criei defesas contra este Inverno horrendo e este frio que me congela as entranhas... quase que consigo ignorar as pessoas pequeninas que em vez de «julgarem» um crime macabro se limitam a  avaliar sentimentos entre pessoas do mesmo sexo.
  Com um certo esforço esqueço que a justiça do meu País continua a dar relevância a insignificâncias... e a soltar criminosos... e fechando os olhos até consigo não dar conta de ordenados milionários de alguns ignorantes e grotescos apresentadores de televisão e de uns quantos jogadores de futebol, cuja utilidade para a sociedade continuo sem perceber.
  Com algum sacríficio procuro seguir o conselho de um médico meu amigo: «Faz aquilo que tens de fazer, por necessidade, embora não gostes, o melhor que puderes, o mais rápido que conseguires, para que te sobre tempo para aquilo que gostas de fazer, embora isso possa não te dar lucros materiais».
  Mas querem realmente saber o que mais me «chateia»? As campanhas eleitorais.
  Estou tremendamente entediada de ouvir os podres dos candidatos serem dissecados até à última molécula. Irrita-me solenemente os beijinhos que estes dão a senhoras com bigode nos mercados e a criancinhas de ranho no nariz. Enerva-me os disparates e sobretudo todas aquelas promessas que fazem.
  E sabem porquê? Porque conheci de perto (familiarmente perto) a história de alguém que lutou e que morreu pela democracia e sem precisar de um fato Armani (passo a publicidade). Alguém que sacrificou a sua vida e o conforto da sua família por um ideal, por uma causa, por um partido... sobretudo pelo fim de um regime que não lhe concedia liberdade para fazer coisas muito simples das quais muito gostava: teatro, escrita e tertúlias com os amigos.
  O António Maria viu os seus livros serem confiscados. Foi preso político durante muito tempo... soube que os seus filhos passaram necessidades por terem ficado sem a sua fonte de sustento. Soube que a sua mulher teve de trabalhar até as suas mãos sangrarem para pôr comida na mesa todos os dias.
  Foi sujeito a todas as torturas imaginadas... desde a tortura do sono, estar dias com água pela cintura... foi espancado e até rasgou a própria camisola (a única que então tinha) para fazer ligaduras para as costelas que lhe partiram.
O que me «chateia» é que quando o soltaram, para morrer poucos dias depois, ele já não conseguiu ver a queda do regime que vigorava, a chegada da democracia.
  Por estas e por tantas outras razões, pelo António Maria, de quem dizem, herdei alguns gostos, não consigo compreender como podem as pessoas não exercerem o seu direito de voto.
 Desde que me lembro de «ser gente» que desejava ter 18 anos para simplesmente poder votar e desde então faço-o... e faço-o por mim, pelos Antónios Marias, pelo partido. Faço-o, não por tradição, mas por ser um direito. Não por um rosto mas por uma convicção.
E, realmente «chateia-me», e muito, quem não vota.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Olhares

Mais do que palavras ocres e vazias,
são os meus olhares, de fantasia e encanto
com que te presenteio.
É esta música sem-fim
que vive no meu corpo
e, em ti, ganha matéria,
realidade...
estado.
Mais do que palavras frias de tão explícitas,
amargas de tão óbvias...
são estes olhares que te dou...
este prazer que te concedo
esta fome de ti
esta ânsia do infinito
que te compõe.
Sempre que a finitude em mim quiser espaço
pensarei em ti e em tudo o que no teu corpo corre.
Nesse mar de chamas,
com que me encantas.
Sei onde encontrar
a calma procurada,
o berço,
a alma...
por vezes fugidia... outras tantas vezes calma.
Com o maior desencanto... atrasei-me e não me encontrei contigo.
Neste episódio sem repetição
e sem encenação,
deixo-te o meu olhar,
que evitas com medo de o conheceres
com tanto (ou mais) medo do que eu de amar.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Aqui


É neste meu leito,
perto do meu peito,
que te adormeço,
entre tule e cetim,
velas e jasmim.
Embalo-te nas vielas,
decoradas por mim,
embriago-te nas curvas...
contemplo-te em cada pedaço de céu.
Seguro a tua mão,
de eleito,
para que sintas cada batida do meu viver...
cada nota
deste meu diáfano ser.
Desbravo a tua pele...
e o meu mundo desdobra-se
e sobre ti, perfeito, ganha cor
… e gosto, palavras e rosto (?)
É neste vale,
quente e profundo,
de doce baunilha perfumado,
que te saboreio
nesta cerimónia báquica
em que tudo por mim é composto...
em que tudo por ti é imaginado
em que tudo, por ambos, é desejado.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Milagres(?)

  Não acredito em actos milagrosos e muito menos em santos. Acredito na ciência, na arte... e procuro, por vezes com uma certa dificuldade, não deixar de acreditar nas pessoas.
  Milagre é definido, pelos dicionários, como «um facto extraordinário ou inexplicável pelas leis da Natureza que é atribuído a uma causa divina ou sobrenatural», ou no sentido figurado, «coisa extraordinária de que não se está à espera ou que parece incompreensível».
  Sabem com o que me surpreendo? Admiro-me como uma simples hora ou duas de conversa e um pouco de atenção conseguem construir aquilo que vulgarmente conhecemos como milagre.
  Será que afinal eles (os milagres) existem e este domingo foi uma prova disso? Será que dar conta da existência dos ditos faz parte de todo este processo de crescimento?
 Milagre pode, então, ter vários significados... este ano começou por mostrar-me exactamente isso. Pode, para alguém, ser «um milagre», sentar-me ao seu lado, falar de histórias antigas, recordar alguns que já partiram... e dar-lhe a mão (à quanto tempo não lhe faziam isso?)... perguntar-lhe se precisa que faça algo...
  Para que seja necessária a ocorrência de um milagre... algo tem de estar, obviamente, mal, ou menos bem. A solidão dos mais crescidos é, sem dúvida, uma das maiores doenças da sociedade actual provocada e sofrida pela própria.
  Concluindo que o milagre é um feito humano... fico um pouco mais «contente» e continuarei a tentar nunca deixar de acreditar nas pessoas... afinal são estas as únicas que podem fazer os tais milagres... e sem terem de subir a um altar, fazer sacríficios ou algo por aí além. Basta que queiram... afinal, como passo a vida a dizer, «querer é poder».
  Ela, no dia seguinte, ligou-me e disse-me: «Ainda bem que vieste. Fez-me tão bem falar um bocadinho... até estou menos doente! Fizeste um 'milagre'!».