quinta-feira, 28 de abril de 2011

Sorriso

Quando mais uma noite vier,
uma insónia se instalar
e uma flor murchar... eu estarei aqui...
talvez azeda, um pouco mais amarga do que ontem...
estarei deitada do meu lado.
Vendo o sol nascer
sem dormir,
sem comer.
Por muitos planetas que corra,
muitos quadros que pinte,
muitas flores que cheire...
nada se compara...
ao cheiro do nascer de um dia de Verão
a entrar no meu quarto...
a tomar posse do meu corpo
a domar as minhas palavras...
e a dançar com todos os meus sentidos.
Rebolo sobre mim...
deslizo sobre os lençois de algodão,
com cheiro a fresco sabão,
levanto-me e, de pés nus, aprecio o chão frio...
abro a janela...
e retribuo o sorriso do Sol.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Crenças


  Porque continuo a acreditar nas pessoas? Pois não sei. Esforço-me para nunca o deixar de o fazer. Por vezes quase desisto. Isso acontece quando reparo em coisas que, realmente, parecem-me completamente descabidas. Tenho vontade de mudar de planeta quando me cruzo, como alguém disse, com pessoas «tão habituadas ao muito e ao supérfluo que o pouco não lhes chega e o acessório tornou-se indispensável».
  Por vezes julgo que estou completamente desactualizada... ou será que, agora, os tempos são realmente outros e tudo se faz mais precocemente?
Todos os miúdos (pequenos) têm uma intensa vida social... não há uma abençoada semana em que os papás não tenham de andar de trás para a frente a levar e a trazer criancinhas a casa uns dos outros. E os adolescentes? Uma festa de aniversário de adolescente que se preza não se realiza em qualquer lado e é vedada a pais. Só aceitam tecnologia de última geração, só estudam em escolas privadas, só vestem roupa de marca e ler... só o menu do Macdonald's... pois... a maior parte são gordos, caminham para obesos de comando de consola na mão, sentados no sofá... horas a fio... dias a fio... que se transformam em anos. Comunicam por abreviaturas e vulgarizam palavrões. Vulgarizam também outras palavras, bonitas, roubando-lhes o significado por tantas vezes as repetirem... em vão.
  As pessoas decepcionam-me sobretudo pela sua superficialidade. Não sabem dizer «não» aos seres que devem (porque escolheram conscientemente essa opção) formar para o Mundo.
  Estes crescem como seres consumistas, egoístas e iletrados. São sobretudo descartáveis: usam coisas e pessoas quando lhes são proveitosas, novas, úteis; depois deitam-nas fora. Este mal não é só das novas gerações... infelizmente! Os que assim não são, raras excepções, são apelidados de «betinhos» ou, como se dizia antigamente meninos-queques.
  Não me importo de o ser. Muito pelo contrário. Sou, certamente, pois continuo a reparar nos outros e a acreditar neles. Não deito comida fora. Continuo a gostar de abrir um livro e saborear cada página... o seu cheiro... o seu toque. Continuo a guardar uma caixa de madeira (um pequeno baú) com coisas que aparentemente parecem lixo: bilhetes de cinema, de avião, de espectáculos, de entradas em museus.... de eléctricos.... contas de determinados restaurantes, flores secas, pedras, conchas, postais, bilhetes manuscritos... cartões de flores... coisas que toda a gente deita fora... mas que eu guardo e cada uma delas simboliza um momento especial, marcante... coisas velhas, por vezes amarrotadas, simples pedaços de papel... que ninguém percebe o que significam... apenas eu. Desactualizada? «Quadradona»? Certamente! Mas não me importo. Recuso-me a acrescentar «bué» e «cota» ao meu vocabulário.     
  Quero continuar a acreditar nas pessoas e que existem excepções. Acredito que nem todos pertencem à geração descartável e que se diz «à rasca». Não uso e deito fora. Dou-me ao luxo de usar e abusar... saborear, aproveitar e dependendo daquilo que se esteja a falar, conservar... mais que não seja no tal baú de madeira... de recordações ou memórias... para muitos lixo, para mim ouro. Um dia alguém deitará o meu baú para o lixo... mas eu não deixarei de acreditar... seja aqui ou numa nuvem qualquer.



sexta-feira, 18 de março de 2011

Dias marcados


Detesto esta «coisa» de «dias»... Dia Internacional Disto, Dia Nacional Daquilo... até o Dia do Ovo já inventaram...
Sabado é o Dia do Pai, festividade esta que acontece no mesmo Dia de São José, 19 de Março, dia de inspiração católica (ainda por cima).
Deve-se homenagear os «pais» neste dia? Não mais, não menos em que todos os outros. E que pais? Todos devem ser homenageados ou só aqueles que o merecem? Quem merece e quem não? Será um direito ou um dever? Uma obrigação ou um prazer?
Sabes... há alguns anos que não destaco este dia... nem corro para encontrar uma pateta prenda para ti. Sabes porque o faço. Nem tão pouco te beijo especialmente por ser «Dia do Pai». Mesmo sabendo que gostavas que eu o fizesse... mesmo sabendo que tu mesmo nunca o fizeste.
Não foste tu que brincaste comigo no quintal. Não foste tu que construiste uma cadeirinha de madeira para mim (que ainda hoje guardo). Não foste tu que criticaste as mini-saias da minha adolescência. Não foste tu que secaste as minhas lágrimas... nem desamarrotas-te o meu coração.
Recordo-te com ternura, olho-te com ternura. De ti detive o sonho constante... o alheiamento prepositado... a infantilidade eterna... o coração do tamanho do mundo. Continuo a sentar-me no teu colo e a receber os teus beijos.
Será que te lembras de um marcador de livros que fiz para ti há muitos anos? Será que te lembras daquela vez que me levaste ao parque e que me magoei?
Será que reparaste que tudo o que fiz... foi para ti e com tão pouco de ti?
Assustam-me as tuas rugas. Temo a tua partida. Precisas de mim. Não me assusta a nossa posição invertida... desde que me conheço que me habituei a cuidar de ti (e não o contrário). Assustam-me as nossas semelhanças... procuro afastar-me pelas nossas diferenças. Ao contrário de ti... já não temo as palavras...
... amo-te mas não me fazes falta.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Tal como nascemos...

  Durante dias fomos bombardeados com uma série de descobertas de corpos de idosos, mortos nas suas próprias casas. Alguns deles encontravam-se nesse estado a algum tempo.
Não me admiro afinal... qual o espanto de as pessoas morrerem sós se foi assim que viveram a maior parte das suas vidas?
O que me espanta, apesar de já não surpreender, é a constatação do poder dos media. Depois de um idoso ser encontrado, e essa notícia ter despertado a atenção de todos, seguiu-se um verdadeiro «descobrimento» em cadeia de cadáveres. O que chocou uns passou a ser notícia quase diária de rádios e tvs. Mais que não seja esta «notícia» serviu para o bem da saúde pública. Todos os que, a algum tempo, não viam determinado idoso, que vivia sozinho, equacionaram a possibilidade deste estar morto, na sua própria casa. Lembraram-se porque viram os casos na televisão. Colocaram a hipótese da possibilidade de um corpo (um pedaço de carne) estar a apodrecer dentro de uma casa. Não se lembraram quando ele ainda tinha vida, fome, dor e frio; quando era mais do que simples matéria. Não era conveniente. Dava trabalho, perdia-se tempo e poderia dar despesa... em medicamentos (por exemplo) afinal quantos idosos, actualmente, deixam de comprar medicamentos para... poderem comprar comida? Muitos!
Assim como ninguém se lembra das crianças que vão para a escola sem comer. Daqueles que roubam o lanche aos coleguinhas por fome (isso acontece diariamente em algumas escolas deste País e disso tenho testemunhas!).
Estas pessoas, que já foram novas, contribuíram para a economia do seu país, fizeram os seus descontos, trabalharam toda uma vida. E tiveram direito a quê? A morrerem tal como nasceram... sós!
Não tiveram direito a passarem os seus últimos anos comodamente instalados num lar (algo impossível, tendo em conta o preço dos legais e tendo em atenção, também, que quase diariamente são encerrados uns tantos, mais baratos e nem sempre maus, com a desculpa de não terem condições).
"Aceita tudo o que vier a ti entretecido no padrão do teu destino, pois que outra coisa poderia responder melhor às tuas necessidades?" Há 2000 anos, Marco Aurélio, escreveu isto. Mas foi há 2000 anos! Recuso-me a aceitar o que me querem dar, ou neste caso o que não me querem dar.
Tenho direitos porque cumpro os meus deveres. Recuso-me a morrer sem assistência médica. Tenho direito a ter um sistema de saúde público digno. Não admito ouvir, como já ouvi, às tantas da noite, da boca de um médico que mal me conseguia perceber, para um familiar meu tomar um ansiolítico pois assim dormia e esquecia a dor que estava a sentir. Quando soltei uma gargalhada, ele perguntou-me qual a parte que não estava a perceber, respondi-lhe que percebi tudo mas não concordava, virei costas e bati com a porta. Pedi o livro de reclamações. Não é isto que merecemos!
  Não era este o final que estes idosos mereciam... estes idosos que, provavelmente, já tiveram uma «família».. A mesma que volta agora, após a sua morte, para reclamar (o que dizem ser seu por direito) os bens materiais.
Afinal sós ou não... é assim mesmo: sós nascemos e sós morremos... a distância temporal que vai de uma coisa até à outra é que faz toda a diferença!

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Esta noite

Por mais esta noite...
hipotequei uns quantos minutos de vida...
troquei umas quantas músicas
rezei a alguns Deuses
de aquém e além-mar.

Esta noite
serei só tua,
sem palavras, sem letras,
sem porquês...
Tal como as estrelas são do céu
e as conchas do mar...

Em troca de apenas umas horas
concedo-te um pouco da minha alma.
Agarra-me esta noite
mostra-me o quanto eu perdi
revela-me todos os segredos...
... conta-me todos os tesouros.

Por mais que tente... não entendo.
Tamanho êxtase será real?
Ou não passará de uma alucinação?
O meu corpo diz que esta é a verdade...
... a minha e a tua.

Esta noite todo o tempo será nosso.
Mesmo que o amanhã não exista,
mesmo que depois o nosso mundo acabe.
O crepúsculo sobeja nos nossos olhos.
Quanto mais anoitece... mais perto estou de ti.
Quanto mais escurece... mais estou em ti.

Em troca destes momentos
nada fica para contar.
As palavras são poucas para narrar
todo o desejo da nossa pele...
toda a fome da nossa alma,
todo o prazer dos nossos corpos.

Por mais que o relógio ande...
Esta noite as horas são nossas...
Em troca de recordações...
Por mais que faças...
Esta noite és meu
... Em troca sou tua, também.                                                                                           

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Importâncias


Com estes olhos abarco mundo, este e outros, rio e choro. Amo e odeio. Não quero saber se são bonitos ou feios, grandes ou pequenos. O que importa mesmo? O que interessa o carro que possuis ou a casa que ambicionas? O que interessa se arrastas "Louboutin" nos pés ou vestes «Chanel»? Porque precisas de «Limoges» nos armários? Serão importantes todos os restaurantes famosos que frequentas, as jóias que ostentas e os sítios que conheces?
Estes são os meus olhos. Aqueles que te diferenciam no meio da multidão. Aqueles que escolhem o que querem ver e ignoram os indignos... de serem contemplados. Qual a importância do que estou agora simplesmente a escrever, do facto de estar frio ou calor... de comprar mais um livro ou um novo CD... ou de fazer rimas, por vezes forçadas, de tão amargas e despidas, de tão vazias?
É com estes olhos que te vejo. São estes olhos que penetram o que de mais profundo existe em ti. De que serve todos se importarem com banalidades... com futilidades... enquanto algures alguém se depara com questões tão importantes como a vida e a morte, a frágil fronteira existente entre ambas?
São estes olhos que desprezam o oportunismo, o consumismo... o egoísmo. São igualmente estes que tomam a vida no seu brilho e dela fazem um cavalo desta batalha.
São igualmente eles que, tal como este «escrito», separam o pequenino do fulcral.
Algures numa das tantas casas que pintalgam esta bola colorida... alguém debate-se com duas eventualidades, eu diria mesmo possibilidades: o nascimento de um novo ser e o desaparecimento prematuro de um outro. Estes olhos, da cor da terra, se assim for, vão beijar um e dizer adeus a outro, mesmo sem o conhecer. O que importa tudo o resto? Banalidades de certo!

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Círculos

Como num laboratório de alquimia ritualizo fórmulas. Procuro tecer mantas de retalhos de vidas e de outros bocados de histórias inventadas ou vividas.
Afinal inventar ou viver podem ser a mesma coisa, ou pelo menos, terem a mesma finalidade... por  isso procuro acrescentar uma pitadinha de tudo aqui, outra de nada acolá.
Envolta num nevoeiro pertubador de tão branco... caminho diante de ti. Observas-me sério, de sobrancelhas erguidas... caminho à tua volta, em círculos... olho-te nos olhos... continuo a andar sobre a tua circunferência, sem falar, lentamente, procurando decifrar o que tentas ocultar. Sorris... não sei se doce ou ironicamente... não retribuo... continuo serenamente a rodear-te como quem abraça o mar. Passo as mãos no cabelo com um gesto descontraído... contudo encenado. Gosto que me observes, gosto de sentir-me vista por ti. Continuo a minha caminhada... espero que não te canses... quero andar para ti... quero ver-te...
até que te levantas, vens ter comigo... seguras-me e fazes com que eu pare a minha caminhada... que me detenha em ti.
Deixo de circular e o mundo inicia a sua inebriante dança à nossa volta. À minha volta... só por mim posso falar, só por mim escrevo... mas não é por mim que respiro. É por esta vontade, esta ansiedade... este crer maior do que o querer... esta febre que vive em mim. Abraças-me dentro do espesso nevoeiro e, pela primeira vez, não sinto que sou o escudo... mas sim a «escudada».
Contudo a minha dança continua... lenta e ritmada... misericordiosa e pecaminosa... tal como um escorpião num círculo de fogo.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Caberei neste breve espaço de tempo?

 Afinal não existem castelos encantados em nuvens de algodão doce?
O céu não é cor-de-rosa e as flores não são deliciosos e coloridos biscoitos? O meu cavalo dourado não pode andar sobre um translúcido rio?
Não basta alimentar-me de poesia, tenho, também de comer seres vivos? Afinal... tenho de sentir dor e frio? Não basta cobrir com o meu cabelo o meu frágil corpo nu?
Diz-me que é mentira... os boatos que tenho ouvido por aí... que um determinado cavaleiro não voltará numa manhã de nevoeiro... que o velhinho de barbas brancas que carrega um saco de prendas ao ombro... não existe? Não quero ouvir... que as searas não são chocolate e que as colinas não são bombons... quero lá que me digas que as estrelas não falam e que o mar não canta. Não posso usar tranças? Nem tão pouco chapinhar nas poças de água? E se me apetecer sair à rua de pantufas? Poderei saltar para aquela tela que me encanta? Não?! E andar descalça na relva? E abraçar aquela árvore grande (como fazia quando vinha da escola)?
Posso não ter tempo de passar largas horas alimentando e observando o trabalho árduo das formiguinhas? Afinal não devo subir à figueira, nas tardes de Verão, e sentar-me num dos seus troncos a comer figos quentes pingados de mel?
Rogo para que me deixem saltar ao elástico durante longas tardes e de seguida lanchar, sentada na soleira da porta olhando o sol (alto) e o cume das árvores.
Nunca me tinham dito que...
Afinal tenho mesmo de crescer?!

domingo, 23 de janeiro de 2011

Recordo-te



Lembro-me de ti... deitada no sofá, que tornaste teu, bem junto à janela, com a tua manta preferida. Recordo o teu cheiro, o teu olhar doce e meigo... os teus suspiros.
Tenho saudades de passar a mão demoradamente no teu pêlo limpo e sedoso, preto e brilhante... e beijar esse teu comprido nariz. Quem me dera voltar a sentir, por baixo da mesa de refeições, a tua cabecinha sobre os meus joelhos.
  Quantas noites passámos juntas, quantos passeios... quantas caminhadas pela praia, quantos gelados partilhados. Diariamente, ainda de madrugada, saías da tua caminha para ires até à porta ver-me partir. Nunca quiseste saber se eu estava com bom ou mau aspecto, nunca pusseste em causa o meu mau feitio... sempre bebeste as minhas lágrimas sem perguntar de que eram feitas... se de tristezas, se de alegrias... se de dor... ou de amor.
  É esta a última imagem que guardo de ti... deitada sobre a maca do veterinário... de olhar doce e sereno... a lamber as minhas lágrimas enquanto eu te beijava desesperada... numa tentativa de me despedir de ti... numa tentativa de decidir o que fazer para não mais te ver sofrer. Parecias dizer: «Não te preocupes, deixa-me dormir... eu ficarei bem!». Esta foi mesmo uma das mais duras decisões que tive de tomar... uma das únicas da qual me arrependo, vezes sem conta, mas tu não merecias... não merecias sofrer... ter ainda mais dores... sem te queixares... nunca.
  Quando foste atirada, ainda com meses, para dentro do quintal do avô... nunca imaginei que te tornasses numa amiga tão grande (apesar de «apenas» pesares 30 kg)... Lembras-te quando ficaste grávida e não conseguiste ter os cãezinhos? Depois da operação deixaste de comer... eu sentava-me junto a ti e durante duas horas diárias... «obrigava-te» a comer grandes «pratadas» de uma papa para crianças; com uma seringa introduzia-te a papa por entre os dentinhos e pronto... voltaste a ficar linda e cheia de apetite, como sempre.
  Nunca me importei quando roías os tapetes... e comias os cortinados... e nem queria saber quando criticavam as tuas formas, demasiado redondas. Carreguei-te, quase sem ter forças, quando te doíam as articulações; nessa altura o teu focinho já não estava completamente preto.
  Todos os 15 natais desembrulhaste, à semelhança dos restantes membros da família, a tua prendinha. Sempre que entro em casa sinto a tua falta... o teu sofá está vazio... e já não vens à porta receber-me.
  Será que te agradeci o suficiente? Obrigada por eu ter sido tua... por te esconderes debaixo da minha secretária, junto dos meus pés, durante longas noites de trabalho... obrigada por, ao contrário de tantos outros, nunca me teres abandonado em situação nenhuma... por me teres deixado, tantas vezes, adormecer com a cabeça sobre o teu quente lombo... obrigada... por me coçares, com os teus dentinhos, os dedos dos pés desnudados... sabia tão bem...
  Semanas antes do cancro te afastar fisicamente de mim... encontrei um pequeno gato abandonado num estacionamento de um centro comercial. Se existem coincidências ou não... não sei... só sei que o acolheste muito bem... ele seguia todos os teus passos pela casa... e tu, do alto da tua «maioridade» apenas o olhavas de lado... como um idoso observa as brincadeiras despreocupadas e alegres das crianças. Já estavas doente e eu não sabia. Julgava que apenas estavas a envelhecer. Quem me dera ter reparado antes... a tempo de algo poder fazer.
  Resta-me o tal gato cinzento... resta-me a esperança de não ter prolongado o teu sofrimento. Resta-me a tua trela de bolinhas cor-de-rosa, a tal que levava na mão... e com que saí, sozinha, do veterinário... sem ti minha amiga... minha doce e bela Diana... resta-me tudo isso e, sobretudo, as recordações... que guardo de ti.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

«Resvés Campo de Ourique»

  Apetece-me utilizar esta expressão popular para definir o estado actual do País... este País que vai a eleições no próximo domingo, convém (re)lembrar... o mesmo Portugal que continua com «as medidas de austeridade» por causa de uma tal de crise(?) e, também, o mesmo que tem tido, até então, um economista como presidente. Economista esse que à semelhança de todos os economistas deve ter começado por estudar a «Bíblia» da Economia de Paul Samuelson (falecido em 2009)... contudo e diferentemente do «pai da economia moderna» (um dos poucos nomes que me conseguiu fazer olhar de diferente forma para esta ciência e, exactamente, por mostrar tão claramente como esta influencia e é influenciada por todas as outras) não teve a capacidade de aproximar esta ciência do grande público. Talvez o tenha «seguido», eu diria em demasia, no que diz respeito ao apoio da teoria do Estado intervencionista (utilização de medidas monetárias e fiscais, por parte dos Governos, para enfrentar recessões e depressões económicas), assim como seguiu Gordon Brown e Barack Obama (mas isso são outras histórias e outros contextos).
  Contudo, e tendo em conta a forma como estamos a ser «apertados», será que dá para ter em conta, ou para não esquecer, a necessidade da existência de uma visão um pouco mais ampla? Para mim a ciência (em oposição à religião e ou ao sistema de crenças) é única, uma só que se divide em vários ramos de uma mesma árvore, com um só tronco. Onde estão, agora, os troncos que dizem respeito às ciências sociais e humanas? Será que uma análise séria (e inteligente, no terreno) ao modo de vida, aos comportamentos, aos gastos, às manifestações culturais e às sociais, também, não seria relevante para medir as consequências das medidas optadas pelo Governo para fazer «face» à crise?
  Eu diria que, quantitativamente, essa análise revelaria que estamos a (sobre)viver «Resvés Campo de Ourique», e quando digo «estamos» refiro-me à «antiga» e quase extinta classe média... que praticamente de um dia para o outro vê a sua qualidade de vida ser reduzida para metade... sem exageros e tendo em conta que o ano apenas começou há 19 dias.
  O certo é que este povinho - disposto neste rectangulozito «plantado à beira-mar» - continua conformado e procura adaptar-se sem muito refilar... vivemos «résves».

P.S.: Para quem não sabe, muitos atribuem o termo «Resvés Campo de Ourique» ao acontecimento do dia 1 de Novembro (dia marcante por este e por outros motivos) de 1755 - Dia de Todos os Santos – quando um terramoto de elevada magnitude, seguido de um tsunami, atingiu a cidade de Lisboa, matando milhares de pessoas. A força do tsunami foi tal que as águas entraram por Lisboa e chegaram bem perto de Campo de Ourique. Foi «resvés».
  Contudo existe uma outra teoria: Marina Tavares Dias (em Lisboa Misteriosa) apresenta a versão segundo a qual a expressão se refere ao traçado urbano da Lisboa oitocentista; a circunvalação que traçava os limites da cidade passava dentro do bairro sendo que Campo de Ourique «à justa» fazia parte da capital.
Seja como for é à justa, ou resvés,  que estamos. Com pouco espaço para «manobras».

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

«Chatices» e politiquices

 Sabem o que realmente me «chateia»? Quase que criei defesas contra este Inverno horrendo e este frio que me congela as entranhas... quase que consigo ignorar as pessoas pequeninas que em vez de «julgarem» um crime macabro se limitam a  avaliar sentimentos entre pessoas do mesmo sexo.
  Com um certo esforço esqueço que a justiça do meu País continua a dar relevância a insignificâncias... e a soltar criminosos... e fechando os olhos até consigo não dar conta de ordenados milionários de alguns ignorantes e grotescos apresentadores de televisão e de uns quantos jogadores de futebol, cuja utilidade para a sociedade continuo sem perceber.
  Com algum sacríficio procuro seguir o conselho de um médico meu amigo: «Faz aquilo que tens de fazer, por necessidade, embora não gostes, o melhor que puderes, o mais rápido que conseguires, para que te sobre tempo para aquilo que gostas de fazer, embora isso possa não te dar lucros materiais».
  Mas querem realmente saber o que mais me «chateia»? As campanhas eleitorais.
  Estou tremendamente entediada de ouvir os podres dos candidatos serem dissecados até à última molécula. Irrita-me solenemente os beijinhos que estes dão a senhoras com bigode nos mercados e a criancinhas de ranho no nariz. Enerva-me os disparates e sobretudo todas aquelas promessas que fazem.
  E sabem porquê? Porque conheci de perto (familiarmente perto) a história de alguém que lutou e que morreu pela democracia e sem precisar de um fato Armani (passo a publicidade). Alguém que sacrificou a sua vida e o conforto da sua família por um ideal, por uma causa, por um partido... sobretudo pelo fim de um regime que não lhe concedia liberdade para fazer coisas muito simples das quais muito gostava: teatro, escrita e tertúlias com os amigos.
  O António Maria viu os seus livros serem confiscados. Foi preso político durante muito tempo... soube que os seus filhos passaram necessidades por terem ficado sem a sua fonte de sustento. Soube que a sua mulher teve de trabalhar até as suas mãos sangrarem para pôr comida na mesa todos os dias.
  Foi sujeito a todas as torturas imaginadas... desde a tortura do sono, estar dias com água pela cintura... foi espancado e até rasgou a própria camisola (a única que então tinha) para fazer ligaduras para as costelas que lhe partiram.
O que me «chateia» é que quando o soltaram, para morrer poucos dias depois, ele já não conseguiu ver a queda do regime que vigorava, a chegada da democracia.
  Por estas e por tantas outras razões, pelo António Maria, de quem dizem, herdei alguns gostos, não consigo compreender como podem as pessoas não exercerem o seu direito de voto.
 Desde que me lembro de «ser gente» que desejava ter 18 anos para simplesmente poder votar e desde então faço-o... e faço-o por mim, pelos Antónios Marias, pelo partido. Faço-o, não por tradição, mas por ser um direito. Não por um rosto mas por uma convicção.
E, realmente «chateia-me», e muito, quem não vota.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Olhares

Mais do que palavras ocres e vazias,
são os meus olhares, de fantasia e encanto
com que te presenteio.
É esta música sem-fim
que vive no meu corpo
e, em ti, ganha matéria,
realidade...
estado.
Mais do que palavras frias de tão explícitas,
amargas de tão óbvias...
são estes olhares que te dou...
este prazer que te concedo
esta fome de ti
esta ânsia do infinito
que te compõe.
Sempre que a finitude em mim quiser espaço
pensarei em ti e em tudo o que no teu corpo corre.
Nesse mar de chamas,
com que me encantas.
Sei onde encontrar
a calma procurada,
o berço,
a alma...
por vezes fugidia... outras tantas vezes calma.
Com o maior desencanto... atrasei-me e não me encontrei contigo.
Neste episódio sem repetição
e sem encenação,
deixo-te o meu olhar,
que evitas com medo de o conheceres
com tanto (ou mais) medo do que eu de amar.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Aqui


É neste meu leito,
perto do meu peito,
que te adormeço,
entre tule e cetim,
velas e jasmim.
Embalo-te nas vielas,
decoradas por mim,
embriago-te nas curvas...
contemplo-te em cada pedaço de céu.
Seguro a tua mão,
de eleito,
para que sintas cada batida do meu viver...
cada nota
deste meu diáfano ser.
Desbravo a tua pele...
e o meu mundo desdobra-se
e sobre ti, perfeito, ganha cor
… e gosto, palavras e rosto (?)
É neste vale,
quente e profundo,
de doce baunilha perfumado,
que te saboreio
nesta cerimónia báquica
em que tudo por mim é composto...
em que tudo por ti é imaginado
em que tudo, por ambos, é desejado.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Milagres(?)

  Não acredito em actos milagrosos e muito menos em santos. Acredito na ciência, na arte... e procuro, por vezes com uma certa dificuldade, não deixar de acreditar nas pessoas.
  Milagre é definido, pelos dicionários, como «um facto extraordinário ou inexplicável pelas leis da Natureza que é atribuído a uma causa divina ou sobrenatural», ou no sentido figurado, «coisa extraordinária de que não se está à espera ou que parece incompreensível».
  Sabem com o que me surpreendo? Admiro-me como uma simples hora ou duas de conversa e um pouco de atenção conseguem construir aquilo que vulgarmente conhecemos como milagre.
  Será que afinal eles (os milagres) existem e este domingo foi uma prova disso? Será que dar conta da existência dos ditos faz parte de todo este processo de crescimento?
 Milagre pode, então, ter vários significados... este ano começou por mostrar-me exactamente isso. Pode, para alguém, ser «um milagre», sentar-me ao seu lado, falar de histórias antigas, recordar alguns que já partiram... e dar-lhe a mão (à quanto tempo não lhe faziam isso?)... perguntar-lhe se precisa que faça algo...
  Para que seja necessária a ocorrência de um milagre... algo tem de estar, obviamente, mal, ou menos bem. A solidão dos mais crescidos é, sem dúvida, uma das maiores doenças da sociedade actual provocada e sofrida pela própria.
  Concluindo que o milagre é um feito humano... fico um pouco mais «contente» e continuarei a tentar nunca deixar de acreditar nas pessoas... afinal são estas as únicas que podem fazer os tais milagres... e sem terem de subir a um altar, fazer sacríficios ou algo por aí além. Basta que queiram... afinal, como passo a vida a dizer, «querer é poder».
  Ela, no dia seguinte, ligou-me e disse-me: «Ainda bem que vieste. Fez-me tão bem falar um bocadinho... até estou menos doente! Fizeste um 'milagre'!».

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Certezas

  A propósito de certezas edificaram-se leis e ciências... criaram-se juras eternas, no entanto não infinitas.
  Como certeza... nem a mim me tenho. Quem é esta que acorda repentinamente  meio da noite porque sonhou com um amontoado de palavras que procuram, sem descanso, uma folha? Quem é esta que se entristece quando é suposto ficar contente? Ou que se contenta... por, ao fim do dia, no Inverno, ver o mar, as gaivotas... o sol que foge e os pescadores que chegam à praia?   
 De certo só tenho a senhora que me espera, de negro vestida... nada mais é tão previsível... tão concreto. Deixei de a temer... quando isso aconteceu venci uns quantos outros temores, vazios. Quando sobre mim ela avançar... será demasiado tarde para ganhar outras certezas e demasiado cedo... para perder as poucas que erradamente tomei como certas.
Até a senhora chegar... tentarei ter a certeza da minha certa (?) existência...




sábado, 18 de dezembro de 2010

Hoje... ou depois talvez...

Também hoje (e em todas as ausências de mim mesma) é em ti que penso. És tu que habitas as minhas canções e naufragas num ou noutro lugar. Quando as minhas mãos procuram as tuas... encontram mil luas e outras quantas estrelas quentes.
  Mais do que um todo buscam uma realidade, um momento ou uma concretização. Um episódio, que se somado a tantos outros constituem uma vida, uma novela, uma história.
 Eu que normalmente sou constituída 99 por cento por abstracção... busco em ti a materialidade que abomino, a realidade do teu corpo.
 Hoje ou depois talvez... ignorarei a alma e quero, somente, a parte bestial da Humanidade. O teu rosto, pouco nítido, não importa... o teu nome muito menos. Não me interessa sequer como és. Anseio pela presença clara do que és.  Enterrei obsessões, cremei dúvidas, encerrei medos. Não quero saber!
  Hoje... só eu, de mim e para mim... por ti.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Ladainha

   No feriado, por mero acaso, entrei numa igreja na capital. Muito bonita sem dúvida, em plena baixa lisboeta. Gosto de igrejas. Gosto, não pelo peso da religiosidade que acarretam às costas, mas pelas magníficas obras arquitectónicas que são. Esta remonta ao século XVIII, estilo tardo-barroco, neo-clássico. As pinturas que tem no tecto representam as três «virtudes cardeais»: Fé, Esperança  e Caridade. O nome do templo remete para o nome de um santo (vulgarmente apelidado de Pai Natal).
  Para minha desgraça, ou melhor, para o enriquecimento do meu tédio, decorria uma missa... o habitual levanta-senta. Confesso que se outrora tinha paciência para respeitosamente cumprir o preceito, agora já não tenho, pelo contrário dá-me uma imensa vontade de rir ver tão degradante rito/frete repititivo... como é evidente não o fiz, sobretudo pelas pessoas que me acompanhavam e que não partilham, feliz ou infelizmente, desta  minha opinião.
  Impressionou-me sobretudo ver uma senhora de joelhos desnudados ajoelhada na pedra fria e secular. Mais do que isso impressionou-me ver um sem-abrigo em cada esquina, de cada rua, da Baixa.
  Dentro da igreja estava quente e cheirava a incenso. Enquanto a ladainha continuava, eu olhava à minha volta e fazia contas: Quantas pessoas sem casa caberiam naquela igreja? Quantos colchões seria possível abrigar naquele tecto? Eu já disse que na igreja estava quente?
  Quando chegou a altura em que a lengalenga é interrompida e fazem passar um saquinho para recolha de dinheiro... não consegui evitar o tal sorriso e imaginar que o saco deveria ser “azul“ e não vermelho.
 Na rua estava frio e a igreja, quente, ficou vazia. Se eu acreditasse Nele também acreditaria que Ele não gostaria que assim fosse. Certamente que preferia ver serem colocadas em práticas as tais «teóricas» virtudes, Fé, Esperança e Caridade, tão magnificamente representadas por um pintor, nesta igreja (do santo padroeiro das crianças e da pobreza); esta, que apenas serviu como exemplo, por eu lá ter entrado nesse dia, e em todas as outras por esse Mundo fora.
  Acreditaria, se fosse crente, que Ele, tal como eu, prefereria humanizar o catolicismo.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O xaile

O dia acorda... os desejos com ele partiram... e o relógio com ele se quebrou. Mais uma página do calendário se muda, mais um ano que se aproxima do fim. Os sonhos criados e derrubados já não são sequer chorados... neste momento constituem barreiras ultrapassadas... e sobretudo “conformadas“.
Não acredito em destino... nem sequer em providência... creio, contudo, que tudo acontece por alguma razão... e, por isso, procuro fazer das mais pequenas coisas lições, ensinamentos que fazem parte do processo de crescimento.
Tal como as pessoas que aparecem e desaparecem das nossas vidas... elas sempre existiram em nós, ou então, aparecem em momentos concretos de forma a mostrar-nos algo, que podia ser de uma maneira, mas que acaba por ser de outra... por vezes sem razão aparente, outras porque não poderia ser diferente. É fantástico como, no meu caso, as pessoas aparecem com as suas diferentes histórias exactamente no momento em que procuro respostas concretas... ou quando estou prestes a tomar uma decisão... na minha própria história. Não acredito em coincidências, mas sim em atracções... pelas semelhanças, pelas diferenças.
  Hoje, à semelhança de ontem, não conseguirei finalizar todas as leituras que tenho por acabar; serei incapaz de pintar aquela tela... apenas quero esconder as mãos sobre o xaile cinzento... e ficar assim... a observar o Mundo, a ver como este se altera a cada segundo... como espectadora... narradora (hoje não participante). Enrolada na posição fetal, coberta apenas pelo tal xaile cinzento – que tem a importância de uma fortuna, para mim – fico assim... abstrata, alheia ao que normalmente me transtorna, ao que habitualmente me encanta ou apaixona.
Não sinto frio nem calor. Sou incapaz de rir ou chorar. Não sinto dor. Recolho-me no xaile como se de um escudo se tratasse... não é grande o suficiente para cobrir todo o meu corpo... mas é forte, quanto baste, para me proteger... para que o seu abraço me transmita aquilo que procuro desenfreadamente... protecção, abrigo, no fundo... tudo aquilo que tenho dado... sem retorno... sem nada pedir em troca... E isto não é uma queixa. Ninguém me obriga a dar o infinito... eu dou... simplesmente.
Hoje quero o xaile cinzento sobre a minha alma nua.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Cores

   Hoje tenho cores na cabeça. Antes cores do que qualquer outra coisa menos boa. Dos olhares retenho o teu castanho. 
Do preto do carvão guardo os desenhos. Das músicas aprisiono o vermelho... vemelho de sangue... sequioso de corpos!
   Guardo debaixo do colchão as cores de uma vida. A cada noite, a cada sonho, solto-as  e deixo-as dançar, de mãos dadas, neste ou naquele capítulo mais ou menos complexo. De vez em quando abro-lhes a janela e deixo-as voar para bem longe de mim... fico com o vazio da transparência, a nudez da pureza, as estrelas que lucilam no breu penetrante do céu. Eu e elas... estamos sós... brilhantes, ávidas de matiz... pigmentação, existência!
  Da minha janela consigo previlegiadamente obvervá-las... resplandecentes... sem cor, apenas brilho... claridade.
As cores, essas, onde estão? Tenho fome de vós. Que caminhos escolheram? Que letras ilustram agora? Quais os corpos pelos quais deslizam... até se prenderem numa curva, mais ou menos perfeita? De quem os lábios que beijam? Cores... clamo por vós para que para mim voltem... para que se façam em mim e, também em mim tomem forma.
 Resta-me o brilho. A luz.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Verdadeiras mentiras

  Tal como um mágico que cria ilusões e faz acreditar que o que nos parece realmente é... assim acontece com determinados episódios. É necessário acreditarmos neles para que ganhem corpo... para que realmente existam.
  Se um mentiroso for dos “bons“... pode mentir tão bem que se convence a si mesmo que está a dizer uma verdade indubitável... e a imaginação/ mentira deixa a sua esfera e passa a ocupar um espaço bem real.
  Quem se convencer que não tem medos, pura e simplesmente deixa de os ter. Querer é poder. Diante de um suposto terror o simples facto de imaginar – não a sua inexistência –  mas que este é superável por outros... facilita, e muito, as coisas. Só se vence um medo através de uma perda. Neste caso ao se perder...  ganha-se... coragem.
  Por este e por outros motivos não acredito na "doença da moda". Todos somos dotados das mesmas capacidades e cabe, a cada um de nós, imaginar os medos e superá-los. Se alguns conseguem... ou outros também conseguem... é uma questão de vontade própria... pois a capacidade está lá no seu sítio próprio. Fraqueza não deve ser confundida com doença... e não estou a aviltar a fraqueza, nem o choro, nem as “birras“ (todas essas coisas que se dizem abundar entre os "pseudodoentes da moda").
  O mais ridículo disto tudo é que se paga, gastam "rios de dinheiro", para ouvir um especialista da "doença da moda" (que não passa de outro, um estranho portanto, com iguais capacidades) dizer que não se está bem... e que deve isto e aquilo... "Com um raio!". Como pode um estranho dizer ao outro o que fazer para que este se sinta melhor? A cura para esta "pseudodoença-da-moda" não existe porque ela mesma, a denominada "depressão", também não. Eu, pelo menos, não acredito na sua existência. Simplificando: Não há antídoto se não houver um veneno.
  Imaginando uma virtual possibilidade de um qualquer desíquilibrio... a regeneração passaria por uma boa mentira do eu para com o eu (e assim volto ao princípio destas linhas)... uma mentira interior (das boas e autoconvincentes) como por exemplo: “Não tenho medo de ter medo!“. Porque das outras, das mentiras exteriores, daquelas que não são de nós e para nós... não gosto!

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

O velho e o cão

  Se as ciências que se dizem concretas se debruçassem realmente sobre a materialidade, aquela física que cabe no espaço das ruas, então... de científico nada teriam. Não é que eu não acredite na ciência, muito pelo contrário, até creio que ela explica praticamente tudo. O que sobra para além dela pode igualmente explicá-la assim como às suas complexas teorias. Simplificando eu diria que tudo é uma questão de nomes que se dão às coisas e aos seres que atribuem “vida“ a essas coisas.
 Estes últimos (os seres) passam a vida a complicar a querer atribuir classificações ao que não é sequer qualificável quanto mais quantificável. Ao que não é visível chamam mágico, irreal, emocional e até sobrenatural... ao restante... chamam Mundo.
Eu simplesmente não chamo. Limito-me a sentir. Hoje, por exemplo limitei-me a sentir quando vi o cãozinho aninhado sobre si mesmo protegendo-se da chuva na estação dos comboios. Limitei-me a sentir quando vi o velhinho sentado na paragem de autocarro... costumo vê-lo todos os dias... independentemente da hora que passe naquele local... ele lá está, sentado, vendo o Mundo passar por ele... hoje sentia também a chuva, o vento e o frio.
Hoje não precisei de chamar vadio ao cão nem solitário ao velhinho. E eles querem lá saber da ciência ou da religião, da metafísica ou da poesia. Muito menos de política. Senti como quem sente por estar vivo... senti o temporal teatralizar o cenário de betão construído. Cheguei a casa, quente, e sentei-me a jantar. Pensei no homem e no cão. Imaginei que podiam ser amigos e aquecerem-se nas noites de Inverno.
De que servem rótulos, nomes ou frases para tentar expressar o que se sente?
Por que chamar abraço a uma troca de energias, a uma partilha de calor? Por que chamar Matemática à ciência que me diz que o homem mais o cão são dois? Efectivações ou etiquetas humanas nada somam ao meu olhar ao vê-los... ao meu arrepio ao imaginar o vazio que neles ocupava todo o espaço... e à minha negligência por nada ter feito. Amanhã pergunto a ambos se têm fome.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

É quase Natal...

Se cada dia for simplesmente um murmurar de palavras que pedem para ser efectivadas no papel, então eu não serei mais do que um mero suporte físico das mesmas. Deixo-as correr em mim, tão naturalmente como as minhas mãos percorrem fotografias antigas e se fixam numa... mais... mais minha.

Tal como todas as segundas-feiras, esta será mais uma... mais próxima do Natal e a de tudo a que a ele se associa. Mais uma vez uma dictomia se impõe.
 Falar de Natal "chateia-me" pelo cinismo, pela materialidade, pela solidariedade para com os mais desfavorecidos, que, de repente, todos dizem sentir, só nesta época... maça-me pela obrigação de retribuição das "dádivas"... mas alegra-me por outros tantos motivos que, cada vez mais, pertencem ao leque das "recordações"... ao baú onde eles vivem e não onde estão guardadas. Vivem, têm vida própria e fazem todo o sentido.

 Aí, no seu espaço especial, no espaço dos meus sonhos, continuam a correr como outrora. Continuo a morar na casa verde com um cão dourado (meu cavalo de tantas corridas e companheiro de tantas brincadeiras). Fazem-se os últimos preparativos. Cheira a canela e a abóbora.
  Na sala o pinheirinho (neste tempo ainda iamos ao pinhal, sem remorsos, apanhar um pinheirinho) cheira a resina. As prendas amontoam-se à volta dele. Os convidados chegam... convidados que fazem parte de nós. Eu e vocês, as crianças, eufóricas, comentamos quantos embrunhos temos para abrir, mostramos a roupa nova que temos para estrear. Os mais velhos dividem-se: as mulheres, na cozinha, fritam as filhós, ultimam as couves e o bacalhau para a ceia. Os homens partem nozes, abrem figos... preparam as bebidas.
  Aquela casa, castelo de todos os meus sonhos, tem vida, ruído, cheiros. O que ontem nos unia é, exactamente, o que hoje nos separa. A comunhão, a infantilidade... o calor... a simplicidade de cada gesto que se revestia de tanto amor.
  Hoje crescemos. Infelizmente já não corremos pelo quintal... e já não uso tranças nos cabelos. Os filhos de alguns de nós não conhecerão o castelo (que hoje já não é verde) mas ainda existe, o cavalo dourado... e muito menos o cheiro a resina. A magia daquele dia em que comemorávamos para além do Natal, um aniversário... é irrepetível...
  ... A não ser que, o que era mais pequeno (hoje o mais alto de todos)  possa continuar a fazer buraquinhos nos presentes para espreitar, antes da meia-noite,  o que está lá dentro... a criança do meio continue a cantar aquelas músicas de Natal (com tantas palavras por ela inventadas) e que eu, a mais velha das três crianças, possa nunca deixar de apreciar cada pormenor, descrever cada cheiro e deliciar-me com cada surpresa, como o fazia... como o faço.
O meu cão dourado não pode mais seguir-nos nas brincadeiras. O nosso castelo encolheu (ou será que fomos nós que crescemos?)... contudo os meus sonhos continuam a caber no seu breve espaço.
  Também os nossos avós não estarão  por lá... a nossa avó não penteará mais os meus longos cabelos. O nosso avô não celebrará mais o nascimento de Jesus como o seu próprio, no mesmo dia.
  Eles não puderam conhecer as pessoas que acrescentámos às nossas vidas, os sonhos que realizámos, outros tantos que adiámos. Não presenciaram o teu crescimento, mais pequeno (certamente que os orgulharias tanto como me orgulhas a mim a cada dia que passa) e nem sequer tiveram oportunidade de ver na bela mulher que te tornaste (criança do meio). Quanto a mim (a criança mais velha) tenho a certeza, que por sempre me terem acompanhado, estiveram presentes em cada momento marcante da minha vida... em cada momento aflitivo impedem-me de cair... e aplaudem-me em tantas outras vitórias.
  Neste Natal, tal como em todos os outros da minha vida, eles estarão comigo. Neste Natal, tal como em todos os outros, vocês, crianças do meu Natal, estarão junto a mim, talvez não fisicamente... mas estarão comigo... porque fazem parte de mim, porque fazem parte das palavras que ainda formam a minha história... a que me compõe e que me faz ser assim... como sou.

O começo

Podem até ser demasiado grandes para caberem num breve espaço de uma folha. Demasiado compostas para se deixarem aprisionar num espaço concreto, numa música certa ou numa qualquer cor.
 Devido ao seu tamanho cabem apenas na alma. No não concreto, mas sim na infinitude de um olhar, na amplitude de um sorriso verdadeiro.
Quero-as como quem quer a imortalidade. Desejo-as como quem ambiciona o impossível, o seu tudo. Sinto-as como quem se dilacera numa dor agonizante... tenebrosa, pungente.
 Vivem em mim, em ti, em toda a gente. Podes expressá-las ou não. Podes materializá-las de diferentes formas... ou não... deixá-las simplesmente na gaveta da não existência.
 Quanto a mim... procuro saboreá-las... decompor os seus sabores em mil cores. Desfrutar de cada seu centímetro... cada sopro... por isso elas (as palavras) aqui ficam... façam delas o que quiserem...